terça-feira, 23 de março de 2010

sou todo desejo... e ele?

de olhos fechados, todo negror se faz desejo. não o olho para poder senti-lo e nem mesmo preciso me esforçar para ignorar tudo o que acontece ao redor. mesmo distante consigo ouvir e acompanhar os movimentos de sua respiração, enquanto a minha, ofegante, revela um desejo cuja vontade é ver tudo virar pele, pulsações, palmas, pelos, pelos afetos que se trocam, se entortam, se transformam. mas ele não me toca... mas sinto que ele deseja. será apenas um desejo meu?

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Tempos irretornáveis

Quem sabe sobre o que foi o relacionamento entre Orfeu e Eurídice? Ela morreu só, e ele, ainda vivo, com a ida dela também sentiu-se só. Os tempos são infinitos e únicos em sua temporalidade, não se tem uma mesma vivência duas vezes. Uma vez que Eurídice tinha ido, qual dos Deuses poderia garantir que, ainda que ela retornasse ao mundo dos vivos, as coisas seriam as mesmas para o casal?
Eurídice conhecera a morte e a violência que as pulsões de um homem podem causar - perseguida por Aristeu, ela morreu na fuga depois de picada por uma cobra - como conseguiria ela ser a mesma depois de morta ao lado de um homem vivo? Orfeu, mesmo derramado na dor de sua perda, era vivo, cantava com tristeza, como só os que ainda sentem são capazes, e era essa talvez a maior distância que o separava da morta Eurídice; maior do que sua lamentável falha de olhar para trás momentos antes de arrancá-la do reino de Hades.
Após a segunda morte de Eurídice, só restou a Orfeu vivenciar sua dor no mundo dos vivos, dessa vez disposto a renunciá-lo. Sua apatia tornou-se uma ofensa diante da volúpia pulsante das mulheres que o cobiçaram. Não é crível que tenha sido por acaso que o músico tenha morrido estraçalhado durante as festividades de Baco, uma celebração flamejante da vida, pelas mulheres rejeitadas por ele. Foram mulheres vivazes e apaixonadas que mataram o homem que só estava integrado à vida em corpo e que, portanto, constrastava funebremente com o bacanal.
Eurídice morreu duas vezes e duas mortes foram necessárias para que Orfeu também abdicasse da vida que não mais compartilhava com a esposa. A morte de Orfeu foi tão completa quanto a da esposa - que morte realizada duas vezes não pode ser vista como uma morte plena? - porque foi assassinado e esquartejado pelas mulheres excitadas que nele avançaram. O desmonte do corpo acompanhado da morte é uma legitimação maior da mesma, pois nem mesmo a unidade do corpo é delegada àquele que morreu. A partir do instante em que Eurídice e Orfeu têm em comum o fato de que ambos estão mortos, os dois podem ser um casal novamente, agora localizados não mais no plano dos que vivem, e sim em um de além-vida onde vagueiam num novo tempo: caminhando às vezes ele na frente e ela atrás, outras ele atrás e ela na frente.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

- não não não ! - disse a mãe raivosa para o menino efeminado - não se deve usar soutien branco de bolinhas pretas como óculos escuros. quantas vezes vou ter que repetir?!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Pendências

Ela era daqueles pêndulos que oscilam, oscilava loucamente com seus cabelos longos; os lábios pendiam frouxos no rosto e tremiam enquanto fazia menção de falar: nenhuma palavra saía porque isso requereria uma decisão, e ela só sabia pender. Pender ereta enquanto dava passos equivocados, até que a queda fosse eminente e não lhe restasse mais a opção de pender.
"Venha cá, moça, ou não, vá pra lá! Ultrapasse aquele monte, ou melhor, suba-o, ou então... role o monte abaixo? Isso desfiguraria seus traços, mas de que lhe servem traços tão belos se fica indecisa sobre em quê usá-los? E se a queda lhe rebentasse com a sanidade? Pouco faria falta, já que limitação das possibilidades a sanidade também requer."
Ferve o corpo em agonia com a imprevisibilidade da indecisão; cada peça mal movida pode implicar em queda e eliminação de incontáveis opções que, depois de escolhida uma delas, fenecerão para nunca mais emergirem. Supondo-se que das escolhas não há fuga, será a própria negação de optar por uma delas também uma escolha? Se isso tudo assim for, será o silêncio também uma resposta e a passividade uma forma de ação?

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

as pontas dos dedos da minha mão e da dela se entrecruzam. "fique tranquilo, coração"

domingo, 7 de fevereiro de 2010

sensações passadas...

boca áspera com gosto de cigarro, imagino. um perfume amadeirado, um pouco enjoativo que se mistura a roupa com cheiro de maconha. não suporto cheiro de maconha, ainda mais quando se mistura a alguém cujas interessantes características são quase todas imperceptíveis perante sua personalidade detestável. sim, a primeira vista ele me pareceu detestável. na segunda, eu tive certeza (embora ele tenha me surpreendido). sim, ele detestável, mas devo confessar que saber que ele gosta de clarice me provoca certo fascínio. clarice, clarice... a que não nos permite ter terceiras pernas...

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Conto da Dona de Casa

Ela era uma senhora que tinha por volta de seus 47 anos. De casada eram somente 17, ela mesma dizia.
Da rotina dos almoços e jantares percebeu um novo fato: o marido franzia a testa e tremia o lábio toda vez que a olhava. A primeira hipótese que lhe veio a cabeça era que esse fenômeno se desse devido ao tamanho de sua papada, que crescia copiosamente. A segunda é que estivesse fazendo barulho ao comer.
A pobre mulher passou a se encolher durante os jantares, juntava os bracinhos um contra o outro e comia tendo o cuidado de travar os lábios e de mastigar o alimento sistematicamente. O esposo estranhou e perguntou à pobre se os gases a estavam atacando novamente. Muitíssimo envergonhada, a mulher lhe narrou sua insatisfação e timidamente lhe respondeu que estava evitando fazer barulho ao comer, ao que o marido lhe respondeu, com um olhar embasbacado, se ela não achava que deveria se preocupar mais com a comida que faziam as dobras transbordarem do corpo do que com o barulho que essa mesma comida provocava. Ela enrubeceu e ainda enrubecida se deitou na cama; soluçante a mulher enfurnou-se em seu travesseiro.
No dia seguinte tirou do banco suas economias, as mesmas que guardava para a viagem, que nunca vinha, com o marido. Contratou dos melhores cirurgiões da cidade e reduziu as medidas que tanto desgostavam o esposo.
Muito esbelta, preparou ela mesma uma refeição para o marido, passara a tarde na cozinha e ansiava por sua chegada. Com gordura fez o molho do strogonoff de carne e do talharim. O esposo chegou faminto, deu-lhe um tapinha no traseiro e sentou-se a mesa. Encheu o prato até a borda da refeiçao e mergulhou o garfo no alimento; fazendo um barulho exagerado enquanto mastigava o que restara das dobras de gordura que já transbordaram do corpo da esposa.